Preciso de poder reviver um dia que seja da nossa curta vida juntas para lhe redescobrir as feições, as expressões e a voz, porque desta caixa de vidro embaciado pela minha respiração em que vivo vislumbro uma vida desfocada lá fora: ouço um som vago que se parece com música, mas não entendo a letra; vejo vultos que passam, mas não reconheço os rostos; percebo que o dia e a noite se sucedem numa cadência sem fim, mas não distingo as cores.
Preciso de poder voltar atrás, abraçá-la e dizer-lhe como gosto dela, porque quando se é criança não se dizem essas coisas. Não é preciso. Aliás, nem pensamos nelas, porque o tempo chega para tudo e um dia, quando quisermos, podemos dizer aquilo que queremos. Mas o tempo engana-nos e acaba sem aviso, porque se cansou, e rouba-nos tudo aquilo que queríamos prender a nós. E deixámos tudo por dizer.
Precisava de um vídeo que fosse, um álbum de fotografias que me mostrasse tudo aquilo que não me lembro dela.
Precisava de a ter aqui comigo, ao meu lado o tempo todo, para ser minha madrinha de casamento e ajudar-me a tomar todas as decisões que têm tido que ser tomadas. Mas não sei como ela era: seria sincera e diria a verdade, ou alinharia nas minhas escolhas para não me ofender? De que tipo de música gostaria: mais clássica e tradicional, ou moderna, para uma dança animada? Que tipo de vestido usaria: comprido de gala, ou mais curto, com uma saia rodada? Como teria agora o cabelo?
Precisava dela para ser madrinha da filha que um dia terei e que terá o nome que ela tinha, a quem vou cantar as canções que ela me ensinou, a quem vou mostrar como comíamos uma laranja apenas com um pequeno furinho para o sumo sair.
Precisava de conseguir lembrar-me mais do tempo em que ela andava por cá e de não sentir tanto a falta dela, para parar este aperto no coração que não deixa o ar passar.
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