Quando andava no secundário tive como professora de francês a pessoa mais amargurada que já conheci e, penso, que alguma vez conhecerei. Uma velhota baixinha, de ideias conservadoras, que vi sorrir apenas uma vez em três anos. A cabeça oscilava-lhe involuntariamente da esquerda para a direita, sempre sem parar num ritmo de ponteiro de segundos, encerrando memórias rancorosas de uma vida de infelicidade começada, segundo se conta, no dia em que foi abandonada no altar.
Lembro-me da minha desilusão quando, já não sei a propósito de quê, lhe disse que tinha dois grandes sonhos: estudar na Sorbonne e ver uma versão de um livro meu adaptada para cinema; e ela me respondeu ao primeiro que seria praticamente impossível, de tão exigente que essa instituição é (acabei por frequentá-la durante um ano), e ao segundo que, para isso, precisava de, antes disso, ser um best-seller (em primeiro lugar falta, até, ser publicado).
Também me recordo do entusiasmo com que recebi a notícia da intenção dela de se reformar, só para voltar às aulas no ano seguinte e dar de caras com ela e com todo o desalento que tal representava.
Nunca gostei dela, pouco retirei do que me ensinou, apesar de adorar a língua francesa, pois se se teme que nos ensina, nada se aprende. Contudo, houve sempre uma parte de mim que quis voltar a vê-la, perceber se evoluiu como pessoa, se o rancor lhe escapou, permitindo-lhe viver o que lhe resta.
Acho que a vi hoje de manhã no autocarro: uma velhota embrulhada no familiar sobretudo castanho (nunca lhe vi mais nenhum), de rosto frio com uma expressão carrancuda. Prestei mais atenção e ali estava ele: o movimento tão típico de oscilação da cabeça.
Fui a viagem toda com a certeza de que era ela, igual ao que sempre fora, até que uma rapariga entrou, falou com ela e... fê-la sorrir. Para mais, não era uma rapariga de aspeto nada convencional, com o cabelo desarranjado, roupas práticas, piercing no lábio e uma tatuagem no pescoço. Exatamente o tipo de pessoa que a versão que eu conheci dela reprovaria.
Conversaram, riram e saíram juntas como se tivessem, de facto, planos.
Isso fez-me questionar se uma mulher que guardou, durante a maior parte da sua existência, todas as traições da vida e que viveu ao sabor delas, conseguiu deixar que alguém a reconquistasse e aprender, novamente, a viver dias diferentes daqueles de infelicidade pura.
Se não tiver sido ela, penso como será possível a única memória que uma pessoa guarda da sua passagem pelo mundo ser uma sequência turbilhonante de desamores, inspirados por aquele maior, aquele primeiro, que para sempre a condenou.
1 comment:
Temos tendência a rotular os nossos professores baseadas nas atitudes que eles têm nas aulas. Mas por vezes também nos enganamos:) Beijinhos
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